Tenho tido uma relação complicada com o meu casaco de inverno. Sim, aquele que aguentou o inverno russo de dezenas de graus abaixo de zero. Ele é grande e volumoso e algumas horas eu me arrependo de o ter trazido, já que parece desnecessário. Ontem na caminhada para Akihabara eu me rebelei contra ele deixando no quarto do hostel e saindo só com um paletó mais leve e menos quente. O lamen foi, assim, providencial. Já hoje de manhã ele foi bem útil porque fazia um frio considerável às 6 e meia da manhã, quando saímos em direção à estação de Tokyo. Já deu pra perceber que não está nem muito frio, nem muito quente.
A paisagem do país corrobora o meu argumento. Em Tokyo, não está nada parecida com a de quase 7 anos atrás, quando visitei o Japão pela primeira vez, já no final de Janeiro, ápice da estação mais fria do ano. Ainda há muitos resquícios do outono que ainda não acabou. Algumas folhas avermelhadas e amareladas na copa das árvores, um sol que ilumina e esquenta não escondido por nuvens cinzentas. Deu até para se avistar o monte Fuji da casa do João, em Kiyose, pequena cidade rural às margens da megalópole. Os 20 e poucos quilômetros de distância são percorridos em cerca de meia hora pelos trens que de maneira muito eficiente transportam milhares de passageiros. Vai ser um ótimo lugar para nós hospedarmos pois ndicará pistas para entender a relação entre moderno e tradicional, urbano e rural, que os japoneses resolvem de maneira tão estranha e extranha para a nossa lente ocidental. Caminhando pelo bairro, há um contraste entre os terrenos onde pequenos produtores plantam vegetais e os vendem na própria calçada e uma rua em que são expostas esculturas de artistas contemporâneos. Nas três quadras que formam o calçadão central da cidade há uma grande diversidade de restaurantes e optamos por um de tonkatsu para o almoço acompanhado pelo anfitrião. Decifrar o cardápio não é fácil e as escolhas às vezes são aleatórias, mas a comida tem sido sensacional.
Voltando ao tema do casaco, o problema maior é o contraste entre as temperaturas externas e internas. Ao ar livre a temperatura em Tokyo anda em torno de 5 a 10 graus sem considerar o vento. Ao entrar nos lugares abrigados o casaco incomoda pelo volume e pelo calor que obriga à desconfortável tarefa de tirá-lo e carregá-lo. Agora mesmo no trem está tão quente que quase penso em tirar a malha que cobre a camiseta. Enfim, tudo isso pra dizer que ainda não é inverno, mas também não é outono.
A viagem de hoje começou com o frio da manhã, porém com um belo sol de inverno e o céu bem aberto. O monte Fuji estava belíssimo do lado direito do trem, sem nenhuma nuvem ao seu redor. Poucos minutos depois, mas muitos quilômetros à frente (trem-bala) começaram a aparecer nuvens um cenário de chuva recente, e casas com brancos nos telhados indefinidos entre gelo e neve. Um pouco mais à frente, a resposta: era neve. Riscos brancos eram vistos na horizontal pela janela e logo foi visível a paisagem branca, que foi cada vez se tornando mais predominante, a ponto de cobrir carros e árvores. Os bosques de pinheiros da região lembravam o Natal que sempre imaginamos. De repente, não havia mais neve nem nuvens e o sol voltou a brilhar. Acho que essa vai ser o clima da viagem até o fim, variações entre essas categorias dicotômicas: rural - urbano, sol - neve, centro - periferia. Só sei que eu aproveito dessas indecisões para fazer o que gosto: experimentar todos os deliciosos sabores. Um chá quente vai tão bem quanto um sakê gelado (e vice-versa), analogamente para o par sushi - lamén (esse não vice-versa!). Se Levi-Strauss (aliás, grande admirador do Japão) mostra como a passagem da alimentação do cru para o cozido realiza a passagem da natureza para a cultura em diversos mitos, fico com o já mitologizada ideia brasileira de antropofagia: seja em um polo ou no outro, comemos todos.
* tsukemen é um lamen em que o macarrão vem frio e fora do caldo que é quente e bem forte.